Falámos com Miguel Duarte, general manager da Modarte sobre a Samsonite. De como os seus caminhos se cruzaram e agora rumam em direção à sustentabilidade.
Por Sandra Dias
O ponto de partida da parceria entre ambas deu-se numa fase, tal como agora, de mudança comportamental da sociedade. A democratização da moda ganhava expressão e todos os modelos de negócio foram afetados, direta ou indiretamente, pela nova forma de consumo. Hoje esse mesmo consumo é questionado e confrontado com o seu impacto sobre o ambiente.
Qualidade e longevidade dos produtos opõem-se agora a modas rápidas e facilmente descartáveis. Compras responsáveis contrariam compras impulsivas. E a ligação afetiva com os nossos objetos começa a ser restabelecida. Com isso, o restauro e a reparação dos mesmos ganham pouco a pouco mais importância.
E é neste ponto que as duas empresas são um exemplo de longa data. A sua política de pós-venda incentiva à reparação das suas malas de viagem. Que chegam frequentemente às instalações da Modarte para serem concertadas e cumprirem a sua proposta de durabilidade. Na tentativa de manter vivas as memórias que essas malas despertam.
Fundado em 1970, o grupo Modarte antes de se associar à Samsonite já era uma referência reconhecida em Portugal pelas suas malas de viagem de fabrico próprio. O saber-fazer e os seus produtos de qualidade credibilizaram o grupo e capacitaram-no a aplicar a sua perícia na reparação e distribuição da prestigiada marca.
Miguel Duarte conhece este negócio desde jovem. Cresceu juntamente com a Modarte e acompanhou desde o início a evolução da parceria entre a Samsonite e a empresa familiar. Miguel e os seus irmãos passavam as férias na fábrica a aprender e a ajudar na dureza do trabalho. O grupo partilha dos mesmos valores tradicionais da Samsonite e sabe que combinados com inovação dão continuidade à jornada rumo a um futuro mais responsável.
Este ano a Samsonite completa 110 anos e traça as suas metas para 2030. Ano em que espera chegar ao seu destino ao tornar-se a marca de malas de viagem mais sustentável do Planeta. Só que uma marca global como a Samsonite está ligada a diversos intervenientes. A sua rota em direção à sustentabilidade envolve e depende também dos seus parceiros, fornecedores e clientes.
Para a qual os princípios da transparência e da rastreabilidade são tão importantes como a redução das emissões de carbono e da responsabilidade social praticada pela empresa. O destino pode ser alcançado em 2030 mas as atuais mudanças de comportamento social é que vão traçar o itinerário. Consciência ambiental, inovação tecnológica e eco design podem garantir um lugar na frente para esta longa viagem.
Esta entrevista foi editada e condensada para facilitar a leitura.
Porquê que a Modarte decidiu deixar de produzir e dedicou-se à distribuição da Samsonite?
Foi uma decisão que não foi fácil de tomar. Principalmente para o nosso pai que é o dono da empresa, que nasceu nisso e que a criou. Infelizmente assistimos a nível mundial, na década de oitenta, a uma ida para a Ásia da maior parte dos sectores industriais.
Tínhamos cá o mercado europeu que começou a ser invadido pelo mercado asiático. Ou seja, nós começamos a ter dificuldade com a concorrência no mercado, com a questão de preços, incluindo a própria Samsonite. No fundo, foi a pressão do mercado asiático que fez com que nós, na década de noventa/dois mil, tomássemos uma decisão estratégica.
Havia por um lado, os produtos de concorrência global asiática e por outro lado, a dificuldade de capitalizar. A própria Samsonite estava a crescer imenso e necessitava de um foco quase a cem por cento. E com estas duas coisas em conjunto, decidimos eliminar o fabrico e dedicar-nos exclusivamente a sermos a Samsonite cá em Portugal. E foi assim que fizemos.
Quais são as maiores mudanças que assistiu nos últimos anos neste sector, nomeadamente na estratégia da Samsonite?
As mudanças importantes muitas vezes são na área comercial, na parte interna das empresas que o consumidor nem se apercebe muito. No mundo das malas de viagem, nos últimos vinte anos, existem duas grandes fases que aconteceram e que refletem mudanças sociais.
A sociedade, assim como ela se desenvolve, coloca pressão nas marcas e em quem desenvolve os produtos. A década de noventa é a fase do volume. À medida que crescia o boom do poder de compra e que as sociedades eram inundadas de produtos asiáticos, fundamentalmente de vestuário.
Por exemplo, as famílias – vou dizer coisas à sorte – passaram de cinco a quinze camisas, de três a quinze calças. As malas tinham que levar quanto mais volume, melhor. Foi uma evolução. Então a Samsonite e todas as outras [marcas] tiveram que desenvolver uma resposta rápida e que se focasse muito na capacidade de carga. A era do volume: a mala quanto maior, melhor!
Entretanto começam a aparecer muitas companhias de aviação. Nesta fase, primeiro, surgem as questões ambientais versus custos dos combustíveis. Depois, há impostos que são colocados cada vez mais às empresas, e as duas coisas andam relacionadas. As companhias de aviação começaram a ficar hiper sensíveis ao peso. Porque o principal custo é o combustível e o consumo dos aviões está indexado ao peso.
Surge uma “obstrução” das companhias de aviação para reduzirem ao máximo o peso. Começaram a pensar maneiras de refletir isso nos bilhetes. E todos nós sentimos: peso. De repente, em dois, três anos, as pessoas entram nas lojas e perguntam logo, quanto pesam as malas.A Samsonite, inovadora como sempre, foi das primeiras e lançou a mala mais leve do mundo, a icónica Cosmolite, com um quilo e oitocentas gramas.
Inicia-se assim a guerra dos fabricantes, ao peso. Houve uma revolução tão grande que as malas rígidas e em tecido, baixaram em quarenta ou cinquenta por cento ao seu peso. Estamos a falar de passarem de cinco para três e dois quilos e tal. Durante dez anos tivemos a questão do peso. O mercado todo adaptou-se, conseguindo desenvolver um produto leve que nos últimos dois, três anos já estabilizou um bocadinho mas ainda é o peso.
E a questão ambiental?
A última vaga é muito na questão do ambiente. E isto começou também há dois anos na Samsonite, de uma maneira diferente. Muitas vezes a questão ambiental está implícita numa estratégia, diretamente ou não, pela própria natureza dos produtos.
Sabemos que esta questão, pelo bem e pelo mal, mas neste caso pelo bem, também é uma moda. E muitas vezes as modas começam na sociedade civil. E ainda bem porque colocam pressão nos fabricantes e nas marcas. Os gestores e acionistas são confrontados com a questão ambiental e com a questão das vendas.
As vendas são para gerar dinheiro e não vale a pena dar a volta. A Samsonite pela própria natureza da filosofia da sua fundação sempre foi uma marca amiga do ambiente. Ao ter como estratégia principal a durabilidade, a qualidade e a assistência pós-venda. Nós há vinte e trinta anos que reparamos malas cá, que têm vinte e trinta anos.
No início não era pela questão ambiental. Não havia essa consciência, mas as pessoas faziam isso por outras razões. Por uma questão económica e também muito por questões sentimentais. A Samsonite percebeu que isso era um factor diferenciador desde sempre. Uma das melhores maneiras de se ser amigo do ambiente é Reduzir e outra é Reutilizar.
Como é que se consegue permanecer resiliente face aos desafios aparentemente intransponíveis como é o caso da matéria prima?
O plástico pode e deve ser visto como um desafio. Porque ele foi e é muito importante no desenvolvimento estrutural da nossa sociedade. A Samsonite tem de alguma maneira liderado nesse sector embora exista um longo caminho a ser trilhado.
A questão é: de que materiais são feitos e que impacto ambiental esses produtos vão ter? A Samsonite compreende que sempre foi pilar da inovação. Hoje em dia entende que a questão ambiental pode e deve ser essa vertente de inovação. Além da reutilização que têm feito, quer pela sua política de assistência pós venda, quer através da incorporação das matérias primas mais amigas do ambiente, fundamentalmente nos plásticos.
E que o seu processo de fabrico seja o mais amigo do ambiente, fundamentalmente ao nível de energias renováveis. Não é fácil, implica custos imensos para as empresas que têm que equilibrar sempre entre a sustentabilidade do ambiente e delas próprias. É um desafio bastante difícil enquanto empresário trilhar estas duas partes. Mas a Samsonite, na parte que tem fabrico próprio, aqui na europa, está a fazer.
Este ano a Samsonite lançou a campanha Our Responsible Journey, do que se trata?
Esta campanha pretende comemorar os 110 anos da empresa, algo simbólico que coincidiu com a COVID-19 e que acabou por apagar muitas das iniciativas previstas. Mostrando que toda a responsabilidade pretende ser quase o fundamento da nova estratégia de inovação da empresa.
É refundar toda a filosofia de inovação e qualidade mas agora ligada ao ambiente. É uma campanha também para dentro da empresa. No fundo, é querer mostrar ao mercado que queremos inovar sim mas agora na questão ambiental. Em 2018 a empresa criou, em conjunto com investigadores de Universidades, um material que se chama Recyclex.
Que é feito através da inovação total de garrafas recicladas, o chamado PET. Outro fator importante foi o esforço de desenvolver a linha Spark que já existia numa versão normal. E lançou nesse ano a linha Spark ECO que usa cem por cento Recyclex no exterior e interior, com detalhes em cortiça.
A outra vertente, são as malas em polipropileno que fabricam na Bélgica, que ao serem feitas geram muito desperdício. Pegaram neste desperdício e criaram a S’Cure ECO. Em que oitenta e cinco por cento do plástico da mala é feito através de restos de fabrico da própria Samsonite. Ambas as linhas são best-sellers neste momento.
Na linha Spark qual é a mais procurada?
Honestamente eu acho que é capaz de ser a versão ECO. Porque há uma mensagem presente no produto, nas etiquetas, que nos lembra que de alguma maneira estamos a ser amigos do ambiente. A mensagem foi muito bem recebida e o facto de as termos posicionado com preços iguais, foi um sucesso.
Às vezes há marcas que fazem artigos polarizantes porque querem demarcar e depois aquilo é ou grande amor ou ódio. E não têm muita afetividade, até em termos de linhas de design não são consensuais. Para se ser verdadeiramente amigo do ambiente tem que se conhecer as questões emocionais do consumidor.
A estética é relevantíssima, senão vou estar a bater contra o mercado. Vou ser amigo do ambiente e fazer coisas feias? Não! A Samsonite foi, no fundo, consensual. Pegou no best-seller e fez uma versão ECO, só erraram na questão do preço, mas nós corrigimo-la cá. As perspectivas é que no futuro todas as linhas da Samsonite sejam em Recyclex.
Os valores da Samsonite assentam na inovação, qualidade e durabilidade. Como é que a Samsonite e a Modarte, enquanto parceira, sabem que os produtos cumprem a sua proposta de longevidade?
A Samsonite pela longa experiência que tem de malas e porque faz dessa longevidade um dos seus pilares estratégicos da marca e de reconhecimento no mercado sabe-o.
Por causa, antes de tudo, do know-how que passa de geração para geração e depois, porque efetua um conjunto de testes na Bélgica. Primeiro a todos os protótipos mas depois a todos os produtos que fazem. Em amostragens constantes para resistir a um conjunto de testes. Teste de queda, teste de fixação de impermeabilidade, etc. Para testar os produtos para o uso intensivo e que tenha a durabilidade que tem que ter.
Num ano em que as viagens diminuíram, porquê que é tão importante continuar a investir na sustentabilidade?
Porque a causa, ou uma das causas daquilo que nós estamos a viver, pode ou não ser – depois cada um poderá fazer o seu entendimento – um alerta do ambiente e de que o estilo de vida atual está a colocar no ambiente.
As pessoas apercebem-se que há algo que não está a correr bem, seja coronavírus ou outras coisas quaisquer. Que pode ser o indício de uma resposta ambiental. Eu acho que nós devíamos tirar daqui também coisas positivas. Uma delas é ao nível das relações com família mas também devia de ser a questão da pressão ambiental que nós estamos a colocar quer indireta ou diretamente.
E mais cedo ou mais tarde para nós, para as gerações futuras, alguém vai ter que pagar esta conta. E acho que isto neste cenário ainda nos consciencializa mais. Nós, enquanto marcas e fabricantes percebemos que a sensibilidade ambiental terá que ser maior e nota-se que neste momento é maior junto do consumidor. Ou seja, este acontecimento para mim, é um acelerador de algumas questões. O e-commerce, o digital e outra que está associada à questão ambiental.
Atualmente fala-se muito na digitalização da moda, como é que vê a evolução do negócio das malas de viagem neste cenário?
A questão do digital é uma revolução importante. Tirando a questão da COVID -19 que estamos a viver, para mim esta era a revolução do momento no nosso sector e em todo o mundo.
Era aquilo que estava a criar mais transformações. A questão da COVID -19, veio fazer uma coisa que é simplesmente acelerar a questão do digital. É como se nós fossemos forçados a estar em 2025 neste momento. O mundo que vai ficar depois da COVID -19 é um mundo acelerado do ponto de vista digital. E existe de facto um desafio da transição para o digital na questão do ponto de venda.
Estamos atentos e dentro do possível, a incorporar essa transformação. A implementar os canais certos. A questão do omnicanal, por exemplo, temos muita gente que compra online e quer receber a mala na loja. Parece um paradoxo mas metade das entregas eram feitas em loja. Mas sim, é natural que vamos ter que nos adaptar e cada vez mais transferir para as vendas digitais.
E em relação à moda digital, em que poderemos ter o nosso avatar e vesti-lo com roupas digitais numa realidade virtual. Poupando recursos desta forma. Neste cenário qual será a evolução?
O negócio das malas irá acompanhar nesse sentido, se a quantidade de roupa diminuir no fundo, vamos ter quase um retrocesso em que outras características de malas serão novamente mais preponderantes.
Já não será o volume ou o peso, poderão ser outras questões quaisquer que tenha mas não vejo com facilidade a acompanhar essa dinâmica. As malas de viagem ainda têm muito a questão de necessidade. Enquanto que a moda de vestuário é puramente emotiva. Nós já abandonamos a sociedade de consumo há muitos anos
Digo isso a nível económico, a nível ambiental não, o problema é outro. Ninguém ou quase ninguém compra produtos [de moda] porque precisa. O estímulo do consumo é puramente emocional. É comprar tomado pela emoção de ter a carteira nova, o casaco novo, etc. Daí que essa história do avatar pode resolver determinadas questões aí. A mala é muito mais uma necessidade.
Acredita que começam a existir novas métricas de sucesso para além do lucro?
Eu gostava de dizer que sim. Estou a ser pragmático. Há empresas grandes que dizem muito que sim, mas infelizmente, sendo a maior parte delas cotadas em bolsas, estão muito reféns de resultados a curto e médio prazo. Ou seja, uma empresa que pode gerar valor e ter outro tipo de métricas, dificilmente pode ser uma empresa pública cotada em bolsa.
Tem que ser privada, detida por famílias ou por grupos. O próprio sistema atual é um sistema que permeia muito o curto prazo. E o curto prazo é muitas vezes contraditório com outro tipo de métricas – Estou a ser o mais honesto possível – Eu acho que a pressão, no fundo, dos consumidores está a crescer. A obrigar as empresas a mudar.
Sendo sustentáveis e amigas do ambiente para no final terem lucro na mesma, é mais isso. Um mundo sem economia é insustentável. Se não houver estabilidade social e a economia a funcionar, quer dizer, não vale de nada. E esse é que é o desafio, conseguir continuar com uma economia saudável mas sem destruir o ambiente que a longo prazo ponha em causa a própria economia.
Qual é o seu motto para um futuro mais sustentável?
Eu tenho um lema que é aquilo que tento acreditar e até tento impingir um bocado a mim próprio. Nós somos seres humanos e não somos estanques às pressões e estímulos da sociedade. Temos que ter crenças muito fortes e também a quem nos rodeia, especialmente família e filhos. Aquilo que eu tenho, que era um professor meu que dizia, “se és pobre, compra bom”.
O que eu quero dizer é reduzir. As pessoas estão cheias de coisas supérfluas em casa. Nós precisamos comprar menos coisas e melhores. É esta a minha visão. Acho que temos que desmamar esta sociedade do efémero. Mas não é fácil, porque temos uma economia que precisa disto. Mas o meu lema é comprar menos e bom. Compras mais pensadas e boas.