O surfista e ambientalista Miguel Blanco fala-nos da sua ligação com o mar e da sua vida por terra. E como pequenos atos podem promover grandes mudanças.
Por Sandra Dias | Fotografia Rita Queiroz
É na Ericeira que Miguel Blanco encontra o equilíbrio. A Reserva Mundial de Surf, proporciona-lhe um ecossistema perfeito para a prática do desporto e para o seu estilo de vida, mais sustentável. Miguel Blanco é o nome que os entendidos da modalidade e os surf lovers facilmente reconhecem. É surfista profissional e bicampeão nacional, 2018 e 2019. Contudo, nos últimos anos, ingressou noutro tipo de campeonato – mais difícil, mais exigente e em contra relógio – o do ambiente. Na luta contra a poluição dos oceanos e das praias.
Quando em outubro do ano passado surgiu a oportunidade para o entrevistar, não hesitei em dizer que sim. No entanto, a pandemia foi atrasando os meus planos. Porque também queria realizar uma sessão fotográfica com o bicampeão, e isso era mais difícil de conseguir por motivos óbvios. Fomos remarcando, por intermédio da sua relações públicas, sem nunca termos falado. Por fim, conheci o Miguel Blanco no Estoril, quando realizamos a sessão fotográfica para esta entrevista. No final de um dia quente banhado por um pôr-do-sol dourado, a poucos dias do início do verão.
Nessa tarde, entrei imediatamente para a sua legião de fãs. Miguel é genuíno, bem humorado e transparente como a água. A sua forma descontraída de estar faz-nos ver que estamos perante uma pessoa que adora o que faz e que é ali, perto do mar, que é mais feliz. Passavam poucos dias do seu regresso a Portugal, depois do intenso campeonato mundial, o International Surfing Association (ISA) World Surfing Games em El Salvador, mas Miguel vinha cheio de energia para dar continuidade ao seu compromisso com a preservação dos oceanos.
Percebi rapidamente que todos estes atrasos para a entrevista e sessão fotográfica acabariam por beneficiar o resultado. Não só Miguel tem mais experiências para contar como também o bom tempo favoreceu a realização das fotografias. E a data de publicação da entrevista acontece agora, no mês associado à redução dos plásticos em que se celebra o Plastic Free July (a 3 de julho). Coincidindo ainda, com o seu novo projeto e com a entrada em vigor da legislação que contribui para potenciar um modelo alternativo à descartabilidade das embalagens, cujo destino termina muitas vezes no mar.
Nesta entrevista ficamos a saber como o surf lhe abriu horizontes e realidades ambientais que nem sempre mostram o lado mais bonito de cada destino de surf. Foram estas experiências que o levaram a organizar ações de limpeza pelas praias, da Indonésia a Portugal. Aqui, Miguel apresenta-nos melhor a sua missão e contributo para um mundo melhor. Demonstrando que tanto o mar como a terra o movem e o inspiram neste novo campeonato, em que já conquistou o título de eco-hero.
Esta entrevista foi editada e condensada para facilitar a leitura. Apesar de não seguir a linha editorial do site, nesta entrevista foi mantida na segunda pessoa do singular para não descaracterizar o discurso do entrevistado.
Estiveste em El Salvador no ISA, World Surfing Games como foi voltar às grandes competições depois de um ano tão atípico como 2020?
2020 foi o ano de viragem. Em que eu deixei de pôr tanta energia na parte competitiva e vi que havia, se calhar, outros assuntos e outros motivos que não só me preocupam mas que também me motivam.
Vinhas de dois anos consecutivos como campeão nacional de surf. Sentiste que já tinhas chegado a um patamar e que precisavas de mais estímulos?
Não. Porque sempre achei a parte da competição de alguma maneira limitada. É um evento que acontece, dois, três, quatro dias, num determinado sítio. O que me estava a acontecer bastante e acontece a qualquer atleta é que por exemplo, temos um campeonato do outro lado do mundo, vamos dizer, nos Estados Unidos, na Califórnia. Vais à Califórnia e como tens que estar ali tanto tempo, a treinar para o campeonato e a meter a tua energia ali, acabas por passar por aquele momento e nem te consegues aperceber tanto do que está à volta.
E isso fez-me ver, que muitas das imagens que nos “vendiam” ou o que nós pensávamos que um sítio ia ser, acabavam por não ser assim. Chegávamos lá e era um bocadinho diferente. Nas viagens de free surf, que são viagens que eu faço para surfar – para apanhar ondas diferentes ou para ter as minhas aventuras, conhecer pessoas, sítios novos e realidades diferentes – e não para competir. Vemos que há muita coisa, em relação aos temas do ambiente, que ainda não está suficientemente evoluída. E as pessoas não têm consciência que aquilo ainda acontece daquela maneira.
Há muita poluição em El Salvador?
Bastante. E foi também por estes motivos que me fez agir para além desta parte da competição. Podia dizer: “Yah! Fui lá ganda campeonato, muita fixe e tal. Okay, podia ter-me qualificado para os Jogos Olímpicos mas não me qualifiquei por pouco” – mas e então o resto? Visitei um país da América Central que é um país em desenvolvimento e que está, neste momento, cheio de lixo pela rua, pela água, pelos rios. Está tudo contaminado e as pessoas não falam tanto disso. Acho que as verdades são para ser faladas.
Voltaste a 8 junho do campeonato, que foi o Dia Internacional dos Oceanos, tiveste tempo para o celebrar?
Não, cheguei às dez da noite. Passei-o no ar, em aviões. Vês, são essas pequenas coisas que uma pessoa ao levar uma vida competitiva… O que acaba por acontecer, é que tu tens que descartar tudo, para viver só para as competições, para os eventos. É uma coisa que tens que viver muito para ti próprio, para evoluíres no surf, no desporto e na condição física. E acabas por dedicar todo o tempo do teu dia a ti. Mas os objectivos em relação a estes temas ambientais e a esta parte da sustentabilidade, que estás a trabalhar, não são para ti ou para os outros, são em prol de todos.
Qual é a tua maior preocupação ambiental?
Bem… a mim preocupam-me todas, na verdade. Eu acho que está tudo interligado. Mas naturalmente o plástico nos Oceanos. Porque nós surfistas temos contacto direto. Vemos a realidade em vários sítios diferentes e aqui em Portugal, pá, nós até somos um país desenvolvido, mas infelizmente ainda encontramos imensos restos de lixo marítimo, de pesca, de plástico e etc. Que já é preocupante.
Mas quando começas a ir mais longe, e vais à Indonésia ou às Caraíbas, e agora que estive em El Salvador, ahahah, é gravíssimo o que está a acontecer. Porque as pessoas ainda não têm consciência que, pá, se uma pessoa deita um plástico para o chão e acha que ele desaparece. Não desaparece, fica lá milhares de anos. As pessoas não têm essa consciência mas também a indústria não toma a iniciativa de tentar fazer, por exemplo, um packaging mais ecofriendly, ou tentar arranjar soluções que deixem uma pegada menor.
E é complicado, porque nós aqui vivemos numa sociedade que é uma minoria. Vamos ao supermercado e temos oportunidade de escolher este ou aquele produto, e se calhar acabamos por escolher um produto um bocadinho mais caro mas que tem menos pegada. Que é melhor para a saúde e produzido de forma mais sustentável.
Como é que o surf e a tua motivação ambiental se interligam?
Como já te tinha dito, nós [surfistas] somos os primeiros a sentir os impactes negativos no Oceano. E eu acho mesmo que, se não formos nós surfistas que estamos todos os dias no mar ali à procura das nossas ondas e vemos o estado das ondas. O estado do mar, se está com lixo, se não está. A própria qualidade da água, se sentimos a água limpa ou mais suja.
As alterações climáticas têm influência nas estações do ano, têm influência nas previsões meteorológicas e das ondas. Então se nós temos esse feeling direto, das alterações e do impacte que tem na natureza, acho que temos mesmo que ser os primeiros a manifestarmo-nos. Somos os primeiros da fila. E sabemos que, okay, os pescadores ainda deveriam estar primeiro mas a maioria do lixo que encontramos no mar é deixado por eles.
Tens promovido ações de limpeza de praias, como começaste e como têm corrido?
Correm bem. Aconteceu no início do ano passado quando eu estive nas Maldivas. Onde fiz um beach clean up de uma ilha. Uma pequena ilha que estava num estado lastimável, sobretudo na zona ao pé dos barcos. Foi uma ação que teve uma força grande.
Reparei que durante a sessão fotográfica, entre trocas de roupa e idas ao mar, apanhas indiscriminadamente o lixo que te rodeia. Em plena pandemia não te preocupas se estes objetos estão contaminados?
Então… Se está na praia, está a contaminar a praia, portanto é tudo o mesmo…
Depois dessa primeira iniciativa, quantas mais já promoveste e aonde foram?
Já fiz vários beach clean ups, entretanto já fiz em São Tomé, em Marrocos e vários em Portugal.
Consegues mobilizar muitas pessoas?
Estou muito no início e confesso, também ainda não tentei mobilizar centenas de pessoas. Ando a tentar organizar e a planear as minhas ações. Porque mais do que estar a fazer, sem o propósito, quero planear para ser uma coisa que tenha um impacto. Que seja uma coisa de norte a sul e passar pelas praias principais. E pelas zonas que eu sinto que estão mais afetadas.
O que fazem com o resultado da recolha?
Com o lixo que nós recolhemos, muitas vezes fazemos a triagem e entregamos às devidas pessoas que colaboram connosco. Não só para estudos, mas também para fazer a separação do lixo. Tentamos recolher informação e enviar a artistas plásticos que estejam a desenvolver um trabalho com isso. No fundo, tentar de alguma maneira dar uma segunda vida, uma valorização.
No ano passado tiveste uma colaboração com uma artista visual, como foi?
Isso foi outra maneira de eu fazer um awareness, com a Alex [Rosa]. Em que fizemos um conjunto de pranchas, todas com uma mensagem e temática ambiental. Eram quatro pranchas, cada uma com um tema desenhado. Uma com um peixe com plásticos no seu interior; outra com uma ampulheta e uma fábrica a mandar fumo para um glaciar com um urso polar lá em cima (aquecimento global); outra de uma piranha a comer um peixe a ser comida por um tubarão e antes disso tudo, um saco de plástico a comê-los a todos (plásticos dos oceanos); e a quarta prancha tinha o desenho de um pelicano, com o reflexo dele num mar com petróleo.
Mas nem tudo se passa na praia. Também és embaixador do programa Eat4Change da ANP/WWF. Fala-nos da importância desse programa.
Como já te tinha falado, isso da crise ambiental que estamos a passar, é um resultado de vários fatores. Não é só o lixo nas praias é também a maneira como nós consumimos, como nós comemos, como nós nos deslocamos e foi aí que eu comecei um a ir um bocadinho mais longe.
E apareceu esta oportunidade de eu ser embaixador da ANP/WWF do programa Eat4Change. Mantendo uma dieta sustentável e que tem como objectivo alertar as pessoas e criar mais consciência do que elas estão a comer. Quer seja de onde é que vem esse alimento, de como está a ser produzido e como é que está a ser consumido. E visa sempre uma dieta mais vegetariana.
Já participaste em alguma ação ou evento com a ANP/WWF relacionada com este programa?
Fiz um par de vídeos com eles, em que mostram um bocadinho da minha vida aqui na Ericeira. Aonde é que eu vou buscar os meus alimentos – à horta de uma vizinha minha, depois vou também ao ali minimercado mais direcionado para os pequenos produtores e é tudo orgânico (biológico), e não tem a limitação dos supermercados que só aceitam as frutas e vegetais, todos bonitos. É uma coisa muito mais verdadeira. Pá, e a verdade é que a qualidade dos produtos não se compara com qualquer supermercado. Mas é uma coisa que as pessoas vão ter que aprender por elas próprias. Nós tentamos consciencializar, passar o máximo de informação mas as pessoas também têm que fazer a sua parte.
E ainda és um dos embaixadores da Route Portugal (organização que tenta resolver os problemas sistémicos associados ao consumo moderno). Quando falamos de consumo a esfera aumenta, comida, roupa e objetos para o uso quotidiano. Também tens essa preocupação com o teu estilo de vida?
Claro que sim. Cada vez mais. Comecei pelo meio de transporte. Tinha uma carrinha a diesel e comprei uma híbrido em que pelo menos já não é cem por cento combustível fóssil, já é meio elétrico. A própria roupa que visto – falo disso algumas vezes com a minha namorada. Porque ela pergunta-me se eu não me sinto mal por estar constantemente a receber roupa das novas coleções [de um dos meus patrocinadores] mas a verdade é que não. Porque, toda a roupa que eu não uso, dou-lhe uma segunda vida.
Dou-a a pessoas próximas e são roupas de qualidade. E depois há pequenas marcas de blogers que me contactam para me enviarem roupa. Hoje em dia já não aceito nada que não tenha um propósito. Porque estar a contribuir para uma sobre produção, só para um pequeno ato frívolo de consumismo, acho que não merece, não é? Não vai significar assim tanto. Tento usar bens de boa qualidade para me durarem mais. Falamos várias vezes que a peça de roupa mais sustentável ou com menos pegada ecológica é a que tu vais usar durante mais tempo. E se calhar se usares um casaco durante vinte anos, essa vai ser a peça com menor pegada ecológica que vais ter.
Só tens 25 anos mas ainda assim, tens alguma peça que gostes muito com mais de cinco/dez anos?
Com cinco anos, tenho várias. Tenho uma camisa, umas calças. Porque gosto muito. E há mais coisas que tenho há mais de cinco e dez anos, e estou a falar de peças de surf. Tenho uns coletes para as ondas grandes, pá, que são coisas que duram bastante tempo e que eu mantenho.
Agora que os campeonatos terminaram. Quais são os teus planos para os próximos meses?
A maior prioridade agora é começar a minha nova série no youtube, que se chama ‘Impact ‘. Como o nome sugere, a série pretende impactar as pessoas e motiva-las a terem iniciativas para travar esta crise ambiental que estamos a viver. A série vai relatar através das minhas aventuras do surf, o quê que eu vi, como aconteceu e como isso me fez agir. De alguma maneira vai ser um pequeno diário, em que provavelmente cada episódio vai ser uma das viagens que eu fiz. Além disso, também estou envolvido em vários projetos ambientais.
O que nos podes contar?
Então, agora quando acabar o primeiro episódio, que vai mostrar o meu percurso como surfista ambientalista, no ano passado. O que me fez mudar e o que é que eu fiz até aqui para começar a direcionar a minha energia para essa parte dos problemas ambientais. Vamos fazer uma première na loja da Rip Curl em Peniche onde vamos ter um dia completo com uma sessão de surf, com um beach clean up com a Route Portugal. Também vamos fazer umas palestras sobre sustentabilidade, vamos ter um barbecue, live music, e inaugurar uma exposição de arte com artistas que integram o lixo marítimo. No final da noite é a première do filme.
Quando é que vai acontecer?
No início de julho.
Como é que o público em geral pode participar?
Vai ser comunicado, para breve.
Qual é o maior apelo, que podes fazer às pessoas que ainda não despertaram para a importância da preservação dos oceanos e/ou da biodiversidade?
O maior apelo que eu posso fazer, é que eu também não sei as soluções. Também não sabemos, todos, como é que seria o mundo ideal, mas a verdade é que estamos juntos nesta mesma missão. Vivemos todos juntos no mesmo planeta e devíamos começar por pensar mais em conjunto. Porque é assim que vamos conseguir encontrar as soluções.
Qual é o teu motto para um estilo de vida mais sustentável?
Pequenas mudanças podem fazer a diferença. Acho que devemos ter mais consciência e informarmo-nos um pouco mais para sabermos o que podemos fazer. Porque quando começamos a aperceber isso, percebemos que são pequenas mudanças que podem fazer a diferença. Se estivermos todos a trabalhar para o mesmo. Se fizermos todos pequenas mudanças, no conjunto, vai haver uma mudança gigante. E vamos viver uma realidade diferente, com certeza.
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