O recomeço, as alterações climáticas e a circularidade na moda

Por Sandra Dias

Traçamos o perfil da moda com base nos mais importantes relatórios desta indústria. Alterações climáticas, circularidade e comunicação marcam o recomeço.

Por Sandra Dias

As Pessoas

No inicio de setembro olhámos para os mais recentes relatórios e inquéritos da Industria Têxtil e da Moda para traçar o perfil deste sector. No mesmo momento em que algumas marcas de moda comunicam as suas novas coleções, mais sustentáveis, para o inicio do outono. A recorrente palavra rentrée, este ano, faz ainda mais sentido. Após uma pausa forçada por causa da pandemia e das férias de verão, vamos finalmente recomeçar.

Em 2020, até agosto, tudo aconteceu dentro das nossas casas: trabalho, entretenimento e compras. Tivemos mais tempo para nos informar e atualizar sobre as alterações climáticas e o aquecimento global. Para avaliar o nosso estilo de vida e perceber (eu espero) que devemos desacelerar o hiperconsumo, nomeadamente o de moda.

Segundo um inquérito realizado em abril a mais de 2000 pessoas, no Reino Unido e na Alemanha pela McKinsey & Company, as preocupações com o impacto das alterações climáticas aumentaram. E em proporção inversa, o consumo abrandou, ainda que tenha havido um crescimento nas compras online, por razões óbvias.

Esta sondagem de opinião revela que 80 por cento das pessoas inquiridas acredita que se deve pagar para reduzir a poluição. Sendo que 57 por cento das quais já alterou o estilo de vida para diminuir o seu impacto ambiental. Que mais de 60 por cento apoiam a reciclagem e optam por produtos com embalagens amigas do ambiente.

As preocupações são também de carácter social, e para 70 por cento das inquiridas a confiança nas marcas e na sua transparência, são imperativas. Em relação aos comportamentos de consumo, 67 por cento considera importante a sustentabilidade dos materiais como factor decisivo de compra. No entanto, este inquérito mostra-nos apenas uma tendência crescente do comportamento do consumidor europeu.

As Alterações Climáticas e o Aquecimento Global

Quando olhamos para o relatório publicado no final de agosto, pela McKinsey & Company em parceria com a Global Fashion Agenda – Fashion on Climate, observamos que os números não são tão animadores. Que cerca de 70 por cento das emissões de gases de efeito estufa totais da industria da moda, devem-se maioritariamente à produção, preparação e processamento dos materiais têxteis. E que cerca dos 30 por cento restantes estão distribuídos pela fase de utilização (20%), do transporte (3%), das vendas (3%), e do fim de vida (3%) das peças de moda.

Quando confrontados com estes números, percebemos que o maior problema das emissões de carbono reside na origem da moda, ou seja, nas matérias-primas. Um estudo elaborado pela Institute for Manufacturing da Universidade de Cambridge revela que o algodão e o poliéster são as fibras mais usadas nesta industria.

Quer isso dizer que vestimos sobretudo roupas de algodão e de poliéster. E que os processos a que submetemos estas matérias-primas – a partir do cultivo do algodão e da extração de petróleo – são os maiores contribuintes da moda para o aquecimento global.

A cultura do algodão é bastante variada e vai do nada ao muito sustentável. Pode ser convencional (com uso intensivo de pesticidas e fertilizantes) e representa a maior parte do algodão utilizado pela industria têxtil. Mas também pode ser orgânica, Better Cotton Initiative (BCI) ou regenerativa.

Existem novos materiais alternativos que a tecnologia desenvolve que são cada vez mais sustentáveis. Segundo o relatório Fashion on Climate, as fibras de celulose artificiais como o modal ou o lyocell produzem metade das emissões quando comparadas com as fibras convencionais. Com a vantagem de fecharem o circulo. O algodão orgânico, por sua vez, reduz a 50 por cento as emissões em relação ao algodão convencional.

Levi's Wellthread Recycled 502 Jeans
Levi's Wellthread High Loose Jeans

A Circularidade e o Algodão Orgânico

O algodão difere do poliéster, não só pelas suas características naturais como também é passível de ser reciclado em novas fibras têxteis dando origem a novas peças de roupa. Ao contrário do poliéster reciclado. Uma vez reciclado, o poliéster perde propriedades necessárias para se transformar novamente em fibras têxteis. Atualmente já é possível reciclar o algodão de uma forma verdadeiramente circular.

Atenta a esta possibilidade que a inovação nos oferece, a Levi’s. lançou uns novos jeans da coleção Wellthread, de algodão orgânico e de Circulose. Feitos em parceria com a Re:newcell, empresa de inovação que desenvolveu a Circulose. Uma fibra de celulose biodegradável feita a partir de resíduos têxteis de algodão.

Ao contrário da viscose, do lyocell, do modal, do acetato e outras fibras de celulose feitas pelo homem, a Circulose não precisa de madeira. E nem precisa de se misturar com fibras sintéticas para se tornar resistente. Basta-lhe o algodão. Esta pode ser uma das soluções para se diminuir a utilização das matérias-primas virgens e assim reduzirmos os 70 por cento das emissões de gases de efeito estufa na industria da moda, revelados pelo relatório Fashion on Climate.

Mais dados sobre outra orientação do sector são fornecidos pelo relatório Organic Cotton Market deste ano, publicado pela Textile Exchange. Em que vemos que a produção de algodão orgânico aumentou 31 por cento durante 2018/2019 face a 2017/2018. Passando a ser o segundo maior crescimento da produção de algodão orgânico, a seguir à produção de 2009/2010.

A resposta ao aumento da produção deste tipo de algodão dá-se pela crescente aposta das marcas de moda em coleções com base no algodão orgânico. A Mango comunicou esta semana que  a sua coleção Denim de senhora para esta estação é totalmente de algodão orgânico e de origem mais sustentável (BCI). Reforçando deste modo o seu compromisso com a sustentabilidade.

Mango Denim | Photo Alexandra Nataf
Mango Denim | Photo Alexandra Nataf

A Industria da Moda

Num outro inquérito, desta vez destinado a trabalhadores da industria da moda. Que decorreu de abril a maio deste ano, o Sourcing Journal inquiriu 264 pessoas, que se inscreveram para participar. Das quais, 29 por cento trabalham em marcas de moda, 16 por cento são fornecedores, 11 por cento retalhistas e 9 por cento trabalha em fábricas. Na sua maioria, 55 por cento, em cargos executivos de topo. Os restantes 23 por cento em cargos de direção, 12 por cento em cargos intermédios e 10 por centro de outro tipo (não especificado).

Os resultados mostram que mais de metade, 52 por cento, destas empresas já está focada na circularidade. Que cerca de 36 por cento estão a começar a desenvolver estratégias nesse sentido. E apenas cerca de 10 por cento admite que a circularidade não é uma preocupação estabelecida.

“Apesar do foco ser o mesmo, as abordagens diferem bastante. Pois o conceito de circularidade pode ter várias definições, dependendo de quem responde” – adverte o Sourcing Journal. Contudo, muitos guiam-se pelos princípios estabelecidos pela Fundação Ellen McArthur e pela Global Fashion Agenda. Que facilmente resumem que a circularidade é “limitar o consumo dos recursos finitos, reutilizar os produtos no seu fim de vida e eliminar os desperdícios do sistema”.

Neste inquérito, o algodão (30%) e o poliéster (40 %) são referidos como as fibras que mais se destinam à reciclagem e ao upcycle. No entanto, apenas 19 por cento destas empresas usam estes materiais reciclados e/ou upcycled na maioria dos seus produtos (60%). O comum, é usarem 20 por cento ou menos de materiais reciclados e/ou upcycled nas suas coleções.

Alguns afirmaram que gostariam de desenvolver peças de roupa com materiais 100 por cento reciclados, mas isto é-lhes extremamente difícil. Outros justificam-se que a tecnologia ainda não lhes dá essa possibilidade. Muitos, por vezes, deparam-se com a dificuldade em equilibrar o coeficiente entre a pegada de carbono e os processos de reciclagem e/ou upcycle. “Queremos ter um impacto que seja ao mesmo tempo sustentável para o planeta e para os nossos negócios, para conseguirmos manter as luzes ligadas e até mesmo crescer” – afirma um dos inquiridos.

Comunicar o pouco que as marcas fazem torna-se importante para quem compra moda. Segundo o inquérito da McKinsey & Company, 63 por cento das pessoas atribui importância à promoção que as marcas fazem em torno do tópico da sustentabilidade. Quais são os materiais das roupas; qual a sua origem; quem são os seus fornecedores; com que fábricas trabalham; que certificações têm; e até qual é a política de CSR, importa saber. O consumidor atual quer transparência e quer comprar moda sem sentimentos de culpa.

A aposta de muitas marcas de moda em materiais sustentáveis prende-se com a preocupação em reduzir as emissões de carbono. Com estas medidas não só diminuem a utilização de matérias virgens como conseguem reduzir a utilização e a poluição da água. Quer seja na produção, preparação ou processamento dos materiais têxteis. Limitando desta forma a utilização dos terrenos agrícolas, poupando-os de fertilizantes e evitando a eutrofização dos solos. O que lhes permite, no final, reduzir custos na produção das suas coleções e ao mesmo tempo acrescentar-lhes valor.

Dockers Alpha Chinos Water<Less

Um bom exemplo vem da Dockers. Para celebrar o décimo aniversário das técnicas do processo Water<Less (desenvolvido pela Levi Strauss & Co.) lançou uma coleção cuja produção reduz significativamente a utilização de água na sua produção. Orgulhando-se de já ter poupado três mil milhões de água nesta última década.

Ao associar este processo à utilização de algodão proveniente de Better Cotton Initiative a Dockers acrescenta um bónus de design à coleção. As calças, no seu interior, têm um pontilhado que permite a quem as comprar, estender o seu ciclo de vida. Uma vez gastas, as calças podem passar a calções. O design e a tecnologia aliados são imprescindíveis para a circularidade. A moda é estética mas também deve ser ética e naturalmente evolutiva.

O Atual Perfil da Moda

Saber que esta ou determinada peça de roupa poupou energia e litros de água é fundamental para todos, pessoas, planeta e economia. A moda apresenta sinais de mudança e a palavra valor torna-se mais abrangente. Se até aqui o lucro era o principal e único objectivo traçado pelas marcas, hoje já se começa a comunicar que o valor também está ligado ao sentimento da moda. Ao valor que se atribui à função, à estética e especialmente à sua circularidade.

Comunicar com transparência e apoiar a circularidade da moda são as melhores e maiores tendências da moda atual. Assistimos a uma mudança de comportamento por parte de quem compra moda. As pessoas estão mais informadas e condicionam as suas eleições de compra avaliando os propósitos das marcas tal como a sua transparência. Elegendo as que melhor expressam os seus ideais e personalidade.

À moda resta-lhe reclamar o seu poder de influencia e dar o exemplo às outras indústrias. Estamos a dez anos de 2030. Com as metas estabelecidas pelo Acordo de Paris, longe de serem alcançadas. Os tão ambicionados 1,5º C pesam na balança das nossas consciências. Tivemos uma pausa forçada. Agora recomeçamos, mais informados e mais conscientes de que as alterações climáticas dependem unicamente da mudança colectiva.

Algum comentário, pergunta ou feedback? Envie as suas sugestões para hello@terramotto.com Vamos gostar de ler o que tem para nos dizer.

Fotografia de Destaque: Rita Queiroz | Desfile: Awaytomars – ModaLisboa Awake

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