Fátima Santos: o legado das jóias

Por Sandra Dias

Estivemos com Fátima Santos, secretaria geral da AORP – Associação de Ourivesaria e Relojoaria Portuguesa que nos apresentou a nova campanha internacional. “Portuguese Jewellery Legacy” fotografada por Ricardo Santos, com direção criativa da AORP,  ilustra de forma intimista este universo. Fátima falou-nos da importância do legado das artes e ofícios da joalharia portuguesa, da preocupação e das práticas sustentáveis na joalharia, como o ponto de partida deste sector que quer servir de exemplo  para a indústria da moda.

Por Sandra Dias

A nova campanha internacional que a AORP promove tem como mote o legado -“Legacy”. O que pretendem destacar?
Pretendemos que a campanha seja uma mensagem de valorização da joia como um legado. De sensibilização da joia como um bem intemporal e eterno, em contrapondo com a indústria de consumo e produção em massa e com o insustentável impacto ambiental que isto acarreta. Para isso, fomos recuperar as técnicas e desenhos mais tradicionais da joalharia portuguesa e enquadrá-los no novo contexto da moda e do consumidor atual. Esta transversalidade mostra como a joia, sendo eterna, nunca passa de moda. As joias são o nosso “para sempre”.

É fácil manter e passar estes legados (o das artes e ofícios e o do planeta) às gerações futuras?
A campanha pretende também estabelecer esse paralelismo. Como a arte da joalharia foi desde sempre passada de geração em geração como um testemunho de arte e saber. Como as joias passam de geração em geração como uma herança de afetos, de memórias. E, no caso do planeta, a forma como nós temos a responsabilidade de o preservar para as próximas gerações. Uma reflexão sobre essa lógica paradoxal entre a efemeridade da nossa passagem e a eternidade do nosso impacto nessa passagem.

Matérias primas de fontes sustentáveis, ou recicladas, optimização dos recursos energéticos e de água assim como o packaging são sempre apontados como parte da solução para uma industria mais amiga do ambiente. Esta campanha contemplou todas estas áreas? Foram implementadas metas?
Enquanto Associação, o nosso papel é o de liderar pelo exemplo. Informar, inspirar, instigar comportamentos. Queremos transmitir aos nossos associados boas práticas em toda a cadeia de valor.

Desde a produção à venda, tentando otimizar processos e minimizar a pegada ecológica. Não tendo um grande impacto ambiental – porque os processos são muitos deles ainda manuais e sem grande impacto em termos de consumos de energia, de água e poluentes. A verdade é que se trata de um setor muito tradicional e pouco modernizado em termos de processos industriais e de gestão. Pelo que pequenas mudanças poderão fazer grandes diferenças.

Portuguese Jewellery Legacy | Photo: Ricardo Santos

Foi criado, neste sentido, algum código de conduta entre os associados da AORP?
Temos um manifesto – “Rethink, React e Reshape” que será partilhado com os nossos Associados. Mas que é apenas um ponto de partida. Iremos criar uma agenda para divulgação de boas práticas e esclarecimento de dúvidas com especialistas no tema, no âmbito da nossa iniciativa “Lapidar”. Além disso, utilizaremos os nossos materiais de comunicação para divulgar casos de sucesso e mensagens de sensibilização – jornal, newsletter e redes sociais. Serão só os primeiros passos de uma missão que assumimos não apenas no horizonte da campanha, mas a longo prazo.

Rethink, React e Reshape. Como pretendem abordar cada um destes tópicos?
São os três pilares da nossa estratégia de sensibilização para a sustentabilidade.
Rethink – Sabemos que a arte da joalharia portuguesa é feita de processos que, sendo intrínsecos ao ofício, são visionários. Em cada oficina, encontramos caixas e embalagens reutilizadas. As matérias-primas são cuidadosamente preservadas para serem reaproveitadas e recicladas.

Na joalharia portuguesa, nada se perde, tudo se transforma. Mas é preciso repensar processos e acima de tudo instigar uma nova mentalidade com vista à adoção de políticas de sustentabilidade, em toda a cadeia. React – Já não será possível inverter o impacto de uma humanidade mais preocupada em evoluir, que em garantir a sustentabilidade dessa evolução. Mas é nossa responsabilidade contribuir para a mudança. Para isso, é preciso partir para a ação.

Perceber como podemos exigir dos nossos governos novas políticas. Identificar em conjunto com as nossas empresas novas medidas. Fomentar a investigação, o conhecimento e a partilha em temas estratégicos para a nossa atividade. Perceber como poderemos sensibilizar os nossos públicos – colaboradores, parceiros, consumidores a envolverem-se no nosso compromisso.

Reshape – Para uma marca ser (mais) sustentável, é necessário olhar para o negócio numa lógica 360 graus. A chamada “economia circular” pensa o circuito do produto, desde a seleção da matéria-prima até ao seu fim de ciclo. Não é só necessário cumprir todas as etapas, mas encontrar os pontos críticos em que a marca pode fazer a diferença.

Portuguese Jewellert Legacy | Photo: Ricardo Santos

Como é que os consumidores e os joalheiros nacionais percepcionam os produtos éticos? Isto é, atribuem-lhes a mesma importância?
É interessante perceber como é que os dois lados veem a joalharia portuguesa. Dentro do setor, a joalharia é vista como um ofício e não uma arte. Existe pouca cultura de orgulho próprio – o que é inerente ao nosso país de forma geral. No consumidor, acreditamos que existe cada vez mais a valorização da joia pela arte e pelo design, ou seja, não apenas pelo metal precioso, mas por todo o trabalho inerente ao seu processo. Temos vindo a trabalhar na valorização do trabalho artesanal e no valor intrínseco por detrás de cada joia, tanto para dentro como para fora do setor.

As marcas de joalharia portuguesa conseguem ganhar a confiança e a fidelidade dos consumidores?
Apesar de ser um setor que viveu durante décadas sem conceito de “marca” e de comunicação direta com o consumidor, a verdade é que hoje em dia já temos verdadeiras “love brands”, com públicos fiéis. Que não só valorizam a marca como se tornam “embaixadores” junto dos seus grupos de influência. As joias têm essa capacidade única de suscitar emoções e as marcas que o fazem, conquistam um público muito fiel.

Portuguese Jewellery Legacy | Photo: Ricardo Santos

É possível mudar as atitudes de consumo e atrair as gerações mais novas como a Y e a Z?
A moda sustentável é o futuro. O consumidor está cada vez mais informado e ciente da importância das suas escolhas. De acordo com um relatório da Nielsen, de dezembro de 2018, três em cada quatro norte-americanos entre os 21 e os 34 anos afirmam que irão mudar “definitivamente” ou “provavelmente” os seus hábitos de consumo de modo a reduzir o respetivo impacto ambiental.

E a tendência acentua-se nas gerações mais novas. Segundo um estudo de janeiro de 2019 da CGS, dois terços dos consumidores norte-americanos dos 18 e os 24 anos compraram um artigo ou serviço amigo do ambiente, no último ano. As preocupações com o ambiente são a segunda principal razão pela qual admitem ficar fiéis a determinada marca. Políticas de sustentabilidade são essenciais à sustentabilidade das marcas.

Fazer parte do Conselho de Joalharia Responsável (RJC) é uma prioridade para as marcas nacionais? Há alguma que seja membro da RJC?
Existe uma empresa nacional certificada, a Finouro e outra em processo de certificação, a José Carlos & Filhas. É uma prioridade para as empresas que pretendam estabelecer relações comerciais com marcas internacionais, que exigem cada vez mais essa certificação junto dos seus fornecedores. Trata-se de um fator competitivo importante para as empresas que atuem no mercado global.

Portuguese Jewellery Legacy | Photo: Ricardo Santos

Podemos dizer que a transparência é o luxo supremo?
A joalharia sempre se pautou por uma política de transparência. Tratando-se de metais nobres, a informação ao consumidor sempre foi uma prioridade, pelo que nesta questão o caminho será também o de criar formas de partilha com o consumidor.

O que torna as marcas éticas ou sustentáveis?
Acima de tudo um compromisso. Não há um caminho para a sustentabilidade. A sustentabilidade é o caminho, um processo em permanente evolução. Que exige conhecimento, experimentação e aconselhamento. Ser eticamente responsável e sustentável é analisar todas as variáveis do negócio e perceber como otimizar os processos para minimizar a pegada ecológica. No caso do setor da ourivesaria, identificamos como principais pontos críticos a origem das matérias-primas.

O chamado “ouro verde” certifica o cumprimento de boas práticas ao nível da ética. Condições de trabalho e proteção ambiental, bem como a utilização de metais reciclados; otimização do consumo energético e de água; política de recolha de resíduos responsável; condições dos trabalhadores e economia circular – promover o restauro e reciclagem das joias.

Qual é o seu motto para um futuro mais sustentável no sector da Joalharia?
As joias são eternas. E nessa eternidade há uma apologia dos princípios de sustentabilidade, do comércio justo (fair trade) e de slow fashion. Comprar uma peça de joalharia portuguesa é contribuir para a proteção das técnicas manuais e do talento de gerações. Feitas à base de matérias-primas nobres, como a prata, o ouro ou a platina, as joias têm grande resistência e perdurabilidade no tempo. Além disso, os metais são altamente flexíveis e moldáveis e podem ser reciclados continuamente, fechando o ciclo. Queremos que o setor da joalharia portuguesa lidere um movimento que a indústria da moda deve obrigatoriamente seguir.

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