ModaLisboa Collective parte 1: Valentim Quaresma

Por Sandra Dias

O pensamento colectivo da ModaLisboa abre as portas para o futuro da cidade e da moda. No segundo dia desta edição, Valentim Quaresma apresenta a sua coleção Manifesto.

Por Sandra Dias
ModaLisboa Collective | ©ModaLisboa | Art Direction: Eduarda Abbondanza | Photo: Carlos Teixeira

A moda é efémera mas a sua essência é bastante conservadora. Respeita o calendário das apresentações e prende-se a metodologias rigorosas que impactam a vida de milhões de pessoas, mundialmente. É um fenómeno sociocultural com uma importância económica enorme só que contribui negativamente para o ambiente. Gerando desequilíbrios sociais e ecológicos.

Cada vez mais conscientes desses desequilíbrios os designers de moda, os consumidores e as Organizações empenham-se em promover práticas mais conscientes e responsáveis para inverter o impacto negativo. Nesta edição a Associação ModaLisboa volta a respeitar o calendário da moda, reforçando no seu programa a sustentabilidade e a importância da colectividade,  cujo motto é “A moda é futuro. E o futuro é colectivo”.

A ModaLisboa Collective tem nova localização, desta dez na freguesia de São Vicente, onde durante quatro dias, de 10 a 13 de Outubro, serão apresentadas 37 coleções para a primavera/verão de 2020. Estas apresentações vão acontecer em formato de desfile, de happenings e de performances distribuídas entre o Palácio Sinel de Cordes – Trienal de Arquitetura de Lisboa, o Mercado de Santa Clara, o Jardim das Laranjeiras, as Antigas Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento ao Exercito e o Panteão Nacional.

Devido a esta metodologia e consistência que caracterizam a ModaLisboa – Lisboa Fashion Week associamos a sexta-feira a Sangue Novo e a Valentim Quaresma. Ele que é um dos nomes incontornáveis da joalharia contemporânea e da moda de autor nacional. Só que Valentim Quaresma desta vez quer quebrar com o conceito da sazonalidade e focar-se mais na verdadeira essência da moda de autor, na inovação. Utilizando o upcyling para expressar as suas ideias e conceitos.

Estive com ele no Palácio Nacional da Ajuda, onde é artista residente e apresenta a sua exposição Apocalipse, patente até 31 de Dezembro. Valentim falou-me da exposição, do seu trabalho enquanto artista, criador de moda e joalheiro. Fui premiada! Para além da entrevista, pude ver de perto o desenvolvimento da sua coleção Manifesto. Tocar e observar os detalhes, e são tantos, das suas peças. Deixando-me muito curiosa para ver tudo acabado e editado, no desfile.

Valentim Quaresma é um génio criativo que por detrás de um figura reservada revela-se uma pessoa com um sentido de humor incrível e um mestre do rigor. Ao exorcizar através da arte ou da moda os seus sentimentos e preocupações encontra um equilíbrio que o torna uma pessoa leve e positiva. Esta entrevista foi editada e condensada para facilitar a leitura.

Valentim Quaresma no final do desfile P/V20 | ©ModaLisboa | Photo: Ugo Camera

O Mestre e o Oficio

Como se descreve, enquanto autor?
Não gosto muito de estar sempre a fazer a mesma coisa, aborrece-me. Seja em que área for, na arte, na joalharia contemporânea ou na moda. E gosto de as desenvolver sempre ao mesmo tempo. Na moda tenho os timings muito bem definidos e na arte é diferente.

É bom ter um limite de tempo?
Claro que sim, para criar uma regra. No trabalho sou bastante organizado, senão não conseguia fazer as coisas que faço. Mas é uma maneira de também puxar por mim. Para cumprir aquilo que quero fazer. Mesmo quando não tenho prazos. Se tenho um projeto artístico para fazer, ainda sem datas para a apresentação, tento estabelecer um prazo para o terminar.

O que é mais importante, o conceito ou a concepção?
As duas coisas. Não gosto muito, às vezes, de ficar preso ao conceito. Quando se está muito preso ao conceito também nos limita. As coisas têm que fluir de uma maneira mais livre. Esta exposição Apocalipse também é sobre isso. Já trabalho há tantos anos que mesmo agora, com a coleção que vou apresentar na ModaLisboa, acho que é muito redutor dizer que me inspirei nisto ou naquilo.

Não se trata de não justificar o trabalho. Jean-Luc Godard dizia, “Não interessa onde vais buscar as referencias, o que interessa é aonde as levas”. Isso é que é importante. É tão redutor para um designer ou para um artista perguntarem onde é que se inspirou. Hoje em dia, mais do que perceber, as pessoas têm que sentir o que estão a ver. E entender porquê que os artistas fazem aquilo.

A concepção faz parte do processo criativo. Que  está sempre ativo quando se tem um atelier e se está sempre a experimentar algo. Que também pode levar ao conceito. Mas para as coisas fazerem sentido tem que se pensar na ideia, naquilo que se quer transmitir. E a partir daí ir buscar ao processo (criativo) tudo o que já se desenvolveu para adicionar ao conceito.

Valentim Quaresma P/V20 | ©ModaLisboa | Photo: Ugo Camera

A Coleção Manisfesto – conceitos e sustentabilidade

Faz sentido, no seu trabalho, falarmos de estações e de tendências?
Este é mesmo o mote da próxima coleção. Que se vai chamar Manifesto. E fala sobre isto. Porque cheguei a uma fase em que tenho que definir o que é o meu trabalho enquanto designer de moda, enquanto criador. Atualmente, acho que faz muito sentido os criadores preocuparem-se mais em produzir inovação.

Porque somos criadores de moda. Em vez de estarmos a fazer, como acontece com muita gente, roupa para sobreviver. Também é necessário. Mas há que impor o nosso nome (moda de autor) ao que fazemos. Esta coleção é sobre isto. Claro que a coleção tem uma inspiração. Claro que a coleção tem muitas referencias do Palácio (Nacional da Ajuda).

Claro que tem o meu ADN nela, que tem tudo o que eu já trabalhei até hoje. Mas essencialmente é isso. É conseguir mostrar com esta coleção a importância que é o trabalho de criação de autor. De moda de autor, de joalharia de autor e de espreitar aquilo que pode ser o futuro. Não criar coleções condicionados pelas estações, pois vivemos num mundo global.

Hoje estamos aqui e amanhã podemos estar no Canadá e estão lá dois graus. Como também trabalhar sem pensar no género. Quando estou a trabalhar não estou a pensar se a peça vai ser vestida por uma mulher ou por um homem. Claro que há peças que têm que ser pensadas para mulher, por causa do corte (modelagem) mas isso é apenas vinte por cento de uma coleção. É isto que quero transmitir com esta coleção, a individualidade e a sustentabilidade. E é tudo isto que é a moda contemporânea.

A questão da sustentabilidade está muito presente nas suas coleções. É uma preocupação constante?
Esta preocupação está sempre presente. É muito difícil encontrar materiais sustentáveis e isso é muito importante. Mas hoje em dia é muito difícil criar uma coleção só com materiais sustentáveis porque é difícil vende-la. A moda é negócio. Tem que se vender. A minha preocupação no atelier é o não desperdício. Eu não tenho desperdício de material no atelier. Nada, zero.

Tudo se aproveita. E isto é um mindset que quero passar aos meus assistentes e às pessoas que vêm estagiar comigo. Os miúdos vêm da escola habituados a trabalhar com tecidos a dois euros o metro. Chegam cá e começam a cortar à parva. E eu mostro-lhes isso. Porque aquilo que está ali, também é dinheiro, é algo que se pode reaproveitar e há sempre um reaproveitamento.

O upcycling é uma das maiores características do seu trabalho, mais que a reciclagem. Porquê?A reciclagem e o upcycling são coisas diferentes. No upcycling aquilo que me dá mesmo prazer é o que é realmente o upcycling (reutilização criativa). Olhar para as coisas e ver o que posso tirar delas em termos de design para transformar noutra nova. A reciclagem também é possível. Faço-a como joalheiro, derreto o metal, também fundo. Uma complementa a outra no meu trabalho.

Valentim Quaresma P/V20 | ©ModaLisboa | Photo: Ugo Camera
Valentim Quaresma P/V20 Bastidores| Photo: Rita Queiroz

A Arte e a Moda

Trabalha há cerca de 30 anos. Quando olha para o passado que lições tira do seu percurso?
Acho que não devia ter trabalhado tanto quando era mais novo. Mas também foi bom, sabes? Fiz outras coisas que não têm a ver com a área mas que também me aumentaram a força e a capacidade de trabalho que tenho hoje. Isso foi uma boa lição. Há coisas que não faria, outra vez, exatamente porque fisicamente foi muito desgastante. Mas como tento retirar sempre a parte positiva daquilo que faço, foi bom para hoje em dia construir as coisas que executo.

Disse numa entrevista, há uns anos, que o último trabalho é o que mais o apaixona. Isso ainda acontece?
Sim, estou sempre a tentar superar-me em relação ao trabalho anterior. A entrega é cada vez maior, a força física é que não (risos).

Qual destes dois projetos o apaixona mais, neste momento, sendo que tem a exposição Apocalipse a decorrer e o desfile na ModaLisboa?
Os dois. Para já, porque a moda apaixona-me. Sempre foi a minha vida toda. E a arte, um pouco mais tarde, também. Mas não consigo desligar-me de uma e começar a outra. Porque é um processo um bocado complicado em termos criativos. São conceitos diferentes, formas de trabalhar diferentes. Mas as duas apaixonam-me completamente.

Qual é a ligação entre a Coleção Manifesto e Exposição Apocalipse?
Embora sejam apresentadas em ambientes e com dimensões diferentes, chega uma altura em que elas se complementam.

Escultura Espiritualidade | Exposição Apocalipse, Valentim Quaresma

Fale-me da sua exposição.
Esta exposição mudou completamente desde que vim para o Palácio. Vim para o cá com um propósito de exposição. Porque achava que podia ser um dialogo interessante entre o estilo neoclássico do Palácio e o meu trabalho, que tem um lado muito apocalíptico. Foi isto que depois acabou por dar o nome à exposição de Apocalipse. Era para ter exposto noutra sala mas depois houve a oportunidade de expor aqui ( na Sala dos Embaixadores no piso Nobre).

E senti que não queria chegar aqui e colocar somente as peças. Que as peças fossem o centro da exposição. Resolvi envolver a sala. Olhei logo para o tecto na primeira vez que aqui entrei. Que é o céu. E daí começou a inspiração. Envolver o meu trabalho numa sala com tanta informação como esta, foi um desafio muito grande. Então quis começar por criar um dialogo com a sala. Usando toda a simetria do espaço na exposição, partindo do tecto.

Quando eu trabalho em moda ou em joalharia vou buscar temas que para mim são relevantes. Temas que são giros de trabalhar e que chegam a um resultado final em termos de moda que me satisfaçam. Quando chego à parte da escultura, não é o tema nem o conceito que vou buscar que são o mais importante. É o que se passa comigo, é a minha visão. É o meu interior que tento passar cá para fora.

Olhei para o candeeiro e pensei numa estrutura central que representasse o meu interior, o meu inconsciente. Esta peça central começou por funcionar como o meu inconsciente. E tem toda a simetria da sala, que faz com que a peça pareça que gira. E à medida que vai girando vai agarrado tudo aquilo que se passou comigo, ao longo destes anos. Tem as peças de carro do acidente que eu tive. Tem a parte enferrujada com a parte que parecem de chamas.

Todo o inconsciente que vai rodando, vai absorvendo tudo que está à sua volta e vem como se estivesse também a guiar esses elementos. A mão de cima, tem uma ligação com o Palácio, que vai agarrar a luz, o candeeiro. Uma peça opulenta pendurada por um fio, que está entre a escultura, o inconsciente, e o céu. À volta estão a minha Espiritualidade, a Razão, a Liberdade e a Vontade de Seguir em Frente. Há detalhes muito subtis, como nesta (a Liberdade) que não tem braços. As asas começam por crescer dos braços. Um pouco como, quando a vida nos corta os bracinhos, crescem-nos umas asas. (risos).

Escultura Liberdade | Exposição Apocalipse, Valentim Quaresma
Detalhe da Escultura Liberdade | Exposição Valentim Quaresma

Essa metamorfose também pode acontecer na Moda. Acredita que a industria da moda algum dia poderá libertar-se do impacto negativo e ser totalmente sustentável?
Se as pessoas o quiserem, sim. Não depende da industria da moda, depende do consumidor, de quem compra. Vemos isso pela industria alimentar. De repente agora toda a gente tem uma alimentação saudável. Vai toda a gente aos supermercados bio. Houve uma mudança e isso pode acontecer na moda também.

Qual é o seu motto?
Ser feliz. Tentar ser feliz à procura da felicidade.

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