ModaLisboa Collective parte 3: Luís Carvalho

Por Sandra Dias

A ModaLisboa Collective encerrou com Luís Carvalho e com mesma expectativa com que começou. Aproximando a industria e a moda para a criação do futuro.

Por Sandra Dias
ModaLisboa Collective Fast Talks | ©ModaLisboa | Art Direction: Eduarda Abbondanza | Photo: Carlos Teixeira

Domingo, 13 de outubro, foi o último dia do calendário da ModaLisboa Collective – Lisboa Fashion Week P/V20 e o começo de uma nova década. O inicio de uma abordagem mais responsável e consciente que incluiu os diferentes intervenientes da moda e da industria têxtil nacionais. Com desfiles, happenings de moda e com palcos dedicados às novas marcas. Onde ainda houve espaço para o diálogo e para troca de conhecimento.

Nesta edição vimos onde a moda está atualmente e aonde pode chegar no futuro. Pensar o futuro sempre foi uma das principais prioridades da Associação ModaLisboa. No sábado, quando cheguei às Antigas Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento do Exercito, à hora em que começaram os desfiles, fui diretamente para o Check Point. Consciente que não iria ver as apresentações das coleções de Nuno Gama, de Imauve, de João Magalhães e se não fossem os atrasos na sala de desfiles, também não iria ver Patrick de Pádua powered by Ambitious.

Os desfiles são apenas uma face da industria da moda. A pensar na complexidade e nos vários intervenientes desta industria, muitas vezes anónimos, a organização da ModaLisboa através dos Projectos Especiais – Fast Talks, Wonder Room e Check Point, fomenta a partilha de conhecimento que ajuda a elevar a moda nacional.

O Wonder Room promove o empreendedorismo e é aqui que podemos encontrar novas marcas nacionais como a Zouri, a Baseville ou a The White Raven. Com data e hora marcada o Check Point, nesta edição, dividiu-se entre a sustentabilidade e a inovação. Segundo Graziela Sousa, responsável pelos Projectos Especiais, “Queremos fazer mais e fazer com que a moda nacional se distinga por aquilo que é bem feito. Que trata bem as pessoas e que trata bem o nosso planeta.”

E foi no Check Point que passei mais de duas horas. A assistir aos workshops organizados em parceria com a plataforma Catalyst. Onde foram apresentadas inovações sustentáveis já implementadas na nossa industria têxtil e distingidas com prémios nacionais e internacionais. Do fio à reutilização de recursos já existentes. Estes workshops reuniram os representantes da Inovafil, da Tintex, da Scoop, da Calvelex e da Valérius. Que partilharam as suas boas práticas e os seus contributos para uma indústria mais responsável.

Maria Assunção e Beatriz Poulson (Calvelex) apresentaram a iniciativa Fabrics4Fashion e a sua tecioteca (biblioteca de tecidos) com mais de sete mil e quinhentos tecidos em dead stock já referenciados e que podem ser vendidos em pequenas metragens. Permitindo a sua reintrodução na moda, ajudando jovens designers e estudantes de moda a iniciarem os seus projetos. Catarina Guise (Inovafil) falou das fibras naturais e das suas alternativas mais sustentáveis.

Ana Silva explicou que a mudança de posicionamento e a abordagem mais holística da Tintex, incorporada em práticas mais sustentáveis, permite-lhes obter colorações em malhas com componentes de origem natural. Daniel Mota Pinto mostrou que sustentabilidade e a responsabilidade social andam de mãos dadas na Scoop. Por fim, Patricia Ferreira (Valérius) apresentou o projeto Valérius 360 de reciclagem de matérias têxteis cujo procedimento permite que peças de roupa antigas ganhem nova vida, sob a forma de fios (cabos têxteis) ou papel de algodão. Fechando o ciclo e impulsionando a moda circular.

Mas o dia ainda estava no inicio e havia espaço para uma ação de sensibilização. Desta vez os envolvidos eram o designer Luís Carvalho, a stylist Tânia Dioespirro e o fotógrafo de moda Carlos Teixeira. Don’t Be Shy, Touch Yourself! É a mensagem na t-shirt criada por Luís Carvalho que alerta para a importância do autoexame como prevenção num diagnóstico precoce do cancro da mama. Tânia Dioespirro é o rosto da campanha e a razão pela qual estas t-shirts existem.

Quando lhe foi diagnosticado o cancro, Tânia preparou-se para lidar com a perda de cabelo e com a sua aparência. Mas logo percebeu que não iria precisar de acessórios para esconder a doença. E os dois amigos decidiram usar a influencia da moda para desmistificar o preconceito associado à imagem do resultado da quimioterapia e chamaram Carlos Teixeira para fotografar a campanha.

“Quis criar uma campanha envolvendo a moda. Para as pessoas verem que podem estar bem consigo mesmas. Que podem estar na moda e ter uma boa imagem, mesmo a passar por este processo. E a Tânia é uma prova viva que isso é possível” explicou o designer. As t-shirts estão disponíveis online desde do dia 12 de outubro, neste que é o mês em que se assinala a luta contra o cancro da mama. Do resultado desta iniciativa, 85% do valor das vendas vai ser doado à Liga Portuguesa Contra o Cancro.

Luís Carvalho voltou à ModaLisboa Collective no domingo, desta vez com a sua coleção de P/V20. E com a responsabilidade acrescida de encerrar o calendário da ModaLisboa – Lisboa Fashion Week. O diálogo entre o masculino e o feminino, diluído na estética da Art Déco, enfatizou a identidade da sua marca. Em que o contraste dos tecidos, sedas fluidas e risca de giz, estabelecem um equilíbrio que transita livremente entre sexos.

O designer retribuiu o voto de confiança que a ModaLisboa que deu e trouxe a fadista Ana Moura que maravilhou todos com a sua voz esplendorosa. Luís partilhou connosco que ainda vive intensamente o nervosismo de cada apresentação. Esta entrevista foi editada e condensada para facilitar a leitura.

Esta entrevista foi editada e condensada para facilitar a leitura.

Luís Carvalho

Identidade Própria

O que é mais importante, o conceito ou a concepção?
São as duas coisas. O conceito é muito importante no desenvolvimento de uma coleção. Porque é o que me vai permitir escolher as matérias primas, as cores, e depois a nível de desfile conseguir contar a história daquilo que eu pretendo transmitir com cada coleção. Mas a concepção também é muito importante. Porque dou muita importância à construção das peças, à modelagem e aos acabamentos. Tudo isto, tal como os materiais, são muito importantes. Porque depois vão ajudar a definir o todo e a reforçar o conceito.

Quando é que o processo começa?
Por norma começa pouco tempo depois de terminar a última coleção. Depende muito da estação que estiver a trabalhar. Tento começar a pensar com antecedência. Começo logo a ver os fornecedores das matérias primas. Mas nem sempre é fácil. E às vezes começo a ter ideias daquilo que vou querer fazer quando ainda estou a terminar uma coleção. Varia muito de coleção para coleção. Pode ser uma imagem que vejo sem estar a pensar na coleção. Que pode ser o ponto de partida para a criação do conceito. Noutras ocasiões tenho mesmo que ir à procura, pesquisar e tentar encontrar o tema. Por vezes, pode partir das matérias primas, quando tenho alguns tecidos que gosto e penso que podem ser interessantes. Já começou de várias maneiras.

Na coleção de O/I 19’20 inspirou-se em Collage do artista digital, Matthieu Bourel. E na campanha de P/V19 optou pelas ilustrações de Catarina Moreira. Como é que o trabalho de outros artistas se refletem e influenciam o seu processo criativo?
No caso da coleção de inverno, surgiu dessa maneira que eu já disse. De uma imagem desse artista. Que ainda não conhecia. Achei interessante e com bastante potencial para trabalhar. Que dali podia retirar muita informação, texturas, cores e elementos para a construção das peças. Preferi ir por esse caminho. Nesta coleção explorei as várias sobreposições das peças, através do styling. Mas ao mesmo tempo sem perder a minha identidade. Com esta influência, podia ter ido pela parte mais gráfica. Que seria mais fácil mas não seria uma coleção tão minha. Então, optei por trabalhar a construção de silhuetas e fazer peças com as tais sobreposições que é algo que eu habitualmente faço. Mas sempre com referencias no trabalho desse artista. Em relação à campanha digital, do verão passado, lembrei-me porque a Cataria Moreira foi minha estagiária e achei que podia ser interessante fazer uma campanha digital. Um bocado influenciado, se calhar, pelo trabalho que estava a desenvolver para a coleção de O/I 19’20. Achei que podia ser interessante e uma maneira inesperada de fazer a campanha.

Luis Carvalho O/I 19'20 | ©ModaLisboa | Photo: Dulce Daniel

Existe alguma peça, que tenha criado ou trabalhado, que seja transversal a todas as suas coleções, isto é, tem alguma peça que possa considerar o seu clássico?
Não sei se é uma peça em concreto mas é um tipo de peça, que é o camiseiro. Que tenho explorado de várias formas. Já o fiz em forma de retângulo, já o fiz em vestido de noite. Tento sempre brincar com os materiais e tento sempre explorar esta peça de várias maneiras, em todas as coleções. Se calhar, muitas vezes isso não é visível. Porque pode nem sempre ser uma camisa. E ser um camiseiro/vestido de noite, um camiseiro/vestido curto, em tecidos mais estruturados ou mais fluidos. É uma peça que tento sempre introduzir em todas as coleções.

O desenvolvimento desse conceito ajuda de alguma uma forma a perpetuar a intemporalidade da marca?
Sim, eu acho que todos os criadores, designers de moda, têm sempre uma ou outra peça que são resistentes a todas as coleções. Que são retrabalhadas e repensadas, portanto considero importante criar essa linguagem. É como as carteiras das grandes casas de moda. São sempre as mesmas mas em materiais e cores diferentes. E chegámos ao ponto em achamos que também faz sentido ter esse elemento continuo presente nas nossas coleções. Mas sempre reinterpretado, claro.

Influências Globais

Ditar ou estar dentro das tendências da estação é para si um factor importante?
Nunca me preocupei muito com essa parte mas sem querer estou sempre nas tendências. Ainda agora, que estão a acontecer os desfiles [esta entrevista foi realizada em setembro de 2019], vou-me apercebendo que estou alinhado com o que é apresentado nas semanas de moda internacionais. Isto também porque todos pesquisamos, vemos e procuramos as mesmas coisas. Somos influenciados pelas mesmas correntes (políticas, sociais, financeiras, artísticas) comuns a todos. Mas hoje em dia também se usa tudo. E isto das tendências é muito relativo. Eu gosto de criar os meus conceitos e de os trabalhar até ao fim. Até ao desfile, até à campanha. De reforçar bem aquilo que quero transmitir de coleção para coleção.

É totalmente permeável a todos os estímulos, ou seja, não se condiciona pelos gostos pessoais?
Não, não me condiciono. Tem mesmo a ver com os temas. Claro que faço as coisas que eu gosto. Há uma cor que eu acho que nunca irei usar, que é o azul turquesa. É a cor que eu mais detesto, mas não vou dizer nunca. Tenho uma aversão ao azul turquesa porque imagino um cetim dessa cor para um vestido de dama de honor, num casamento. A minha cor favorita é o verde, depois os neutros, o preto, o branco e o cinzento. Mas às vezes também dou por mim a usar cores com as quais não me identifico tanto. Lembro-me perfeitamente quando comecei em moda, o cor-de-rosa não era uma cor que eu gostava muito e hoje em dia já uso o cor-de-rosa. Até vai ser uma das cores desta próxima coleção. Tem muito a ver com os temas.

Luis Carvalho P/V20 | ©ModaLisboa | Photo: Ugo Camera

O que nos pode dizer sobre a sua próxima coleção, P/V20?
Nesta coleção o conceito partiu das matérias primas onde quis trabalhar umas imagens que vi referentes à Art Deco, à emancipação da mulher no anos vinte. Trabalhei a silhueta, dessa década, com linhas mais rectas, mais soltas e oversized. Trabalhei algo que eu faço muito e gosto bastante, que são os fatos masculinos. E reinterpretei-os tanto para homem como para senhora. Os tecidos que são normalmente utilizados em fatos de homem, como o risca de giz, utilizei-os em peças mais inesperadas para senhora. Em contraste com isso tenho as lantejoulas e algum brilho. As cores são o preto, o branco, o rosa pálido e o verde água.

Existe um lado andrógino nesta coleção?
Isto já sentimos um bocadinho na anterior onde desenvolvemos algumas peças unissexo. Nesta acaba por ser o mesmo, não são peças unissexo mas são looks que visualmente são unissexo. Ou seja, temos a mesma silhueta e o mesmo corte em homem e mulher mas depois claro, que as peças são adaptadas à ergonomia de cada um dos sexos.

Prefere dizer unissexo ou sem género, para descrever estes fatos que acabou de falar?
Unissexo, sei lá. Para mim vai dar tudo ao mesmo. Porque o que acontece muitas vezes é que já tenho clientes mulheres que compram para elas, peças de homem. E homens que compram peças de senhora. Uso os mesmos materiais em homem e mulher. Ainda tenho esta distinção porque para mim, ainda faz sentido. Mas também tento, ao mesmo tempo, criar looks com silhuetas semelhantes para homem e mulher. Mas chamar unissexo ou sem género para mim é apenas uma mesma silhueta para homem e para mulher.

Luis Carvalho P/V20 | ©ModaLisboa | Photo: Ugo Camera

As Novas Atitudes da Moda

Sente que, desde que começou, tem havido grandes mudanças ou transformações na moda?
Na forma como as pessoas consomem moda. E do tipo de artigos que procuram. A questão de haver cada vez menos problemas de se comprar peças de homem para mulher e vice-versa. O desconstruir desse código pré-definido que é cada vez menos um problema ou um tabu. Acho que as coisas mudaram um bocadinho, mas se calhar também tem a ver como eu construo as coleções. São pensadas de outra maneira. Quando comecei só fazia roupa para senhora e só depois é que introduzi homem. Procuro cada vez mais fazer a fusão entre uma e a outra. Porque acho que faz sentido e acho graça a isso.

Falou há pouco que estamos todos sob as mesmas influencias, quer sejam políticas, económicas e agora, mais que nunca, ecológicas. A preocupação com impacto negativo da moda sobre o planeta tem despertado o interesse das pessoas. Essa é uma questão que lhe preocupa e que também lhe prende a atenção?
Obviamente que isso não me passa ao lado. Mas também não posso ser hipócrita ao ponto de dizer que faço questão de só usar tecidos cem por cento ecológicos porque não é verdade. Se tiver um tecido que seja interessante e com fibras recicladas ou de fontes sustentáveis, terei sempre essa atenção. Tenho outros cuidados, no sentido em que tento sempre escoar as minhas coleções ao máximo. Todas as peças que sobram de outras coleções tenho-as ainda à venda com preços mais acessíveis para evitar o desperdício. Não vou queimar a roupa nem a vou deitar fora. Esse cuidado de reutilizar a roupa é importante. Tento sempre reutilizar os tecidos que sobram. Quer seja para clientes que pretendem peças mais personalizadas ou então faço doações para instituições. De vez em quando, reúno os tecidos que já não uso, porque servem para doações ou para fazer protótipos. Tento reutilizar dessa forma para não haver desperdícios.

E de uma forma orgânica a sua marca está alinhada com alguns dos parâmetros da sustentabilidade: produção local; materiais de fontes sustentáveis; comercio justo; produção em pequena escala; e a reutilização. Já tinha pensado nisso?
É algo que é natural, temos que fazer obrigatoriamente a reciclagem. Só temos um mundo para viver. E faço isso porque para mim, faz todo o sentido que seja dessa forma e não de outra maneira. Eu também não suporto desperdícios, e tenho sempre imenso cuidado com isso. Mesmo na compra das matérias primas, sou mais consciente e não compro exageradamente para não ficar com demasiado stock. Não só pela questão financeira mas também por que não há necessidade de o fazer.

Acredita que a industria da moda algum dia poderá ser totalmente sustentável?
Não sei. As pessoas mudam muito a maneira de pensar em relação à moda. Estão a começar a comprar de uma forma mais consciente e isso também vai levar a uma mudança nas empresas de fast fashion. Mas vai depender, sobretudo das pessoas e do seu consumo. Está nas mãos dos consumidores mudar isso.

Qual é o seu motto enquanto designer de moda?
Ser feliz a fazer aquilo que gosto. Sentir-me entusiasmado e nervoso antes de um desfile e emocionado ao ver as peças a surgirem. É isso é que faz sentido. Quando deixar de o sentir, já não fará sentido trabalhar em moda. Ainda fico muito ansioso e empolgado.

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