O novo luxo é comprar roupa em segunda mão

Por Sandra Dias

Num cenário de crise ambiental surgem novos tipos de negócio como a Maudde. Uma plataforma digital de compra e venda de artigos de luxo em segunda mão.

Por Sandra Dias
Top de seda e brincos vintage, ambos na Maudde | ©Maudde Photo: Luís Baltazar

As irmãs Ana e Marta Silva lançaram a Maudde em abril de 2019. Juntando às suas experiências anteriores a paixão pela moda e pelo planeta. Nesta loja online os dois universos são tratados com igual respeito e admiração. Onde o principal desafio é ganhar espaço num ambiente marcadamente dominado pela moda consumista e facilmente descartada.

Quisemos saber mais sobre esta nova tendência de consumo e falámos com Ana Silva. Durante um pequeno almoço na cafetaria da Fundação Calouste Gulbenkian. Apesar de estarmos rodeadas de diferentes ruídos, sentamo-nos na esplanada. Acrescentando mais um som, desta vez, o dos pássaros. Mas é sempre bom escutar a natureza quando a conversa gira em torno do seu futuro, ainda que indiretamente.

A industria da moda é responsável, segundo as Nações Unidas, por mais de oito por cento das emissões globais de gases com efeito de estufa. Numa altura em que a neutralidade carbónica é urgente, o excesso de produção e o excedente da industria da moda termina muitas vezes em aterros. Que consequentemente vão contribuir para o aquecimento global.

Mas existe a possibilidade de dar continuidade a esses artigos de moda e fechar o circulo. Voltar a recolocar essas peças no mercado faz parte do contributo da Maudde para a transformação desta industria.

Ana Silva, co-fundadora da Maudde | ©Maudde Photo: Maudde

Moda: o dilema da insustentabilidade

O que a inspirou a criar a Maudde?
Foi um caminho longo. Sempre gostei muito de moda mas trabalhei sempre em Marketing, em empresas ligadas a sistemas de informação. Aos 32 anos decidi que queria alterar um bocadinho o rumo das coisas e tentar entrar no mercado de moda. Optei por tirar um mestrado na Faculdade de Arquitetura de Lisboa em moda e passado dois anos saí desse mestrado com um dilema gigante. Porque ao mesmo tempo que tinha adorado tudo, foi aí que comecei a perceber estes factos de insustentabilidade da industria. Fiquei obcecada pelo assunto. Queria imenso trabalhar em moda e sai com a certeza absoluta que não queria de todo, contribuir ainda mais para excessos de produção. Então, fui completamente perdida para outro mestrado. Desta vez em gestão com a especialização no digital. Mas mesmo perdida. Porque estava sem saber que caminho isto podia ter, apesar de adorar moda. E foi no mestrado em gestão que se fez luz para a área do resale. Percebi que podia ter o melhor dos dois mundos. Por um lado trabalhava na área que eu gosto e por outro lado, podia não só não piorar a situação como ainda podia contribuir para a mudança e para a transformação da industria. À minha escala, mas podia. Falei com a minha irmã, a Marta. Que foi das primeiras pessoas a falar-me de sustentabilidade. Porque tá esteve ligada a vários projetos desta área. Ela adorou a ideia, e aqui estamos.

Fale-nos um pouco mais sobre a Maudde.
A Maudde é uma plataforma online de moda de compra e venda de vestuário e acessórios de luxo em segunda mão. No fundo, quisemos criar uma plataforma onde as lojas físicas que existem e que vendem este tipo de artigos, possam colocar as suas peças à venda. E utilizar o nosso canal online para as vender sem terem todos os custos inerentes a tudo isto. Porque ainda são bastante significativos, como a construção do site, a publicidade digital e etc. Depois, os particulares que investem algum dinheiro nas peças de luxo e que acabam por ficar penduradas no armário. E eles ficam um bocadinho hesitantes, não querem dar porque custou-lhes algum dinheiro mas por outro lado, também não as usam. No fundo é uma forma de terem o retorno desse investimento. De renovarem o guarda-roupa. Depois temos os clientes finais que compram as peças com a segurança de estarem a comprar uma peça que eles têm a certeza que tem qualidade e que é autentica. Isto porque todas as peças passam por nós antes de irem para o cliente final. Ou seja, as peças quando são compradas, não vão diretamente de quem as vende para o comprador. Vêm primeiro para a Maudde para serem analisadas quanto à qualidade e autenticidade e só depois é que vão para o cliente final. Queremos criar uma espécie de ecossistema desta área do luxo digital e de uma moda mais sustentável. Criámos uma área no site onde fazemos uma espécie de curadoria de artigos (jornalísticos). Os melhores artigos dessa área. Dirigidos a todas as pessoas, quer sejam compradoras ou que somente se interessem por estes temas e querem ter mais informação.

Quais foram ou continuam a ser as maiores dificuldades em desenvolver este novo modelo de negócio?
Vender luxo em segunda mão online, é um modelo relativamente recente. E em Portugal nós somos pioneiras. Estamos a entrar num negócio que está a crescer e que tem imenso potencial. Mas por outro lado, não temos grandes exemplos de boas práticas, de bons exemplos que resultaram ou não. Sentimos que em Portugal as pessoas ainda não estão familiarizadas com este tipo de mercado. Quando alguém tem, por exemplo uma festa, dificilmente pensa primeiro em ver se há alguma coisa em segunda mão. Geralmente pensam no óbvio. Muitas vezes recorrem ao fast fashion. O que nós queremos familiarizar as pessoas com estes artigos. Mostrar o que há no mercado. Mesmo para as lojas (de segunda mão) o facto de estarem na nossa plataforma acaba por as dar a conhecer. Porque as pessoas não sabem o que existe. Não conhecem, não sabem onde estão, sequer. Também porque ainda não há muitas lojas segunda mão na área do luxo. Que estão sobretudo concentradas em Lisboa e no Porto, isto em Portugal. O nosso objectivo, a curto e médio prazo, é mostrar ao consumidor o que existe e familiariza-lo com este mercado e desenvolve-lo. A nível internacional, acho que são as dificuldades inerentes de estar num mercado global. Num mercado gigante, com imensa oferta. De nos conseguirmos afirmar aí e ter alguma coisa mais para oferecer.

Artigos de luxo em segunda mão, disponiveis na Maudde | ©Maudde Photo: Luís Baltazar

Novos conceitos e contributos da moda sustentável

Será possível alterarmos a forma como comercializamos a moda?
Acho que os factores: produzir, comercializar e consumir estão intimamente ligados e indissociáveis. Se se alterar a forma de produzir vai-se alterar a forma como as pessoas vão consumir. As alterações dos hábitos de consumo, por sua vez, vão obrigar a alterar a forma como se produz e se comercializa. Temos o exemplo das marcas de luxo online. Quando começaram a surgir e quando surgiu a primeira plataforma online, a industria estava completamente descrente. Toda a gente achava que havia factores essenciais para levar à compra de uma peça de luxo. Que eram: o ambiente da loja, a atenção do serviço ao cliente, o tocar e experimentar as peças. Portanto, ninguém acreditava que o consumidor fosse comprar este tipo de artigos online. E a verdade é que o consumidor mostrou que estava preparado para comprar luxo online. Depois o mercado cresceu e veio a comprovar-se que o consumidor também acaba por provocar a alteração na comercialização.

A mudança geracional também contribuiu?
A questão dos millennials serem uma geração mais digital. Que está muito mais tempo online. Que quer muita novidade e muito rapidamente, altera completamente a forma como se comercializa um produto. Mas também há outro ponto que considero que foi essencial. Que é a questão da possibilidade de se devolver e trocar as peças. Ter esse background de logística, também cresceu muito com a moda e que dá logo, uma confiança extra ao cliente. Há muitas lojas de vestuário de luxo em segunda mão, que não permitem as trocas ou que só permitem em determinadas peças. Na Maudde permitimos em todos os artigos. Percebemos que é essencial para mostrar ao cliente que o que está a comprar. O consumidor está muito mais consciente e de tem muito mais necessidade de sentir que está a consumir de forma responsável. Este facto também fez surgir novas formas de comercialização. Existe a venda de luxo em segunda mão online. A venda por subscrição, em que de xis em xis tempo se recebe uma caixa com roupa que pode ficar ou ser mandada para trás se o cliente não gostar. O aluguer de roupas. A produção made-to-order e a costumização onde o cliente tem a possibilidade de “construir” e só depois é que a peça é produzida. E a tecnologia que vai alterar completamente a forma de se produzir e por sua vez a forma de consumir. A inteligência artificial, a big data, os algoritmos xpto que já permitem saber, entre outras coisas, o que é vai ser mais bem aceite no mercado. Consegue-se optimizar melhor a produção, desta forma, e produzir apenas e em maior quantidade as peças que à partida vão ter mais procura. Isto tudo vai alterar o todo. E há uma coisa que vai alterar completamente o mercado de segunda mão, que é a questão da tecnologia blockchain. Que vai possibilitar o rastreamento das peças de luxo, e portanto é muito mais fácil a autenticação das mesmas. O blockchain vai dar o historial todo da peça, por onde passou e por quem foi comprada. Há um registo de todas as transações. Penso que tudo isto, a mudança no consumidor e a mudança na tecnologia vão mudar a produção. Consequentemente mudar a forma como comercializamos a moda.

Acredita que a industria da moda pode realmente mudar?
Acredito que pode mudar, para melhor. Acredito completamente numa industria criativa e inovadora com oferta diferente, dinâmica e sustentável. A industria da moda sempre teve uma capacidade muito grande de dar resposta à procura do consumidor. Aliás, o fast fashion é exatamente isso. O consumidor a procurar peças dentro das tendências e a preços mais baixos. E cresceu da forma que cresceu. Neste momento sabe-se o custo destes preços mais baixos. E que o consumidor começou a alterar um bocadinho a sua seleção. Neste momento procura peças sustentáveis. Quer ter um consumo mais responsável. Eu acho que não há como a industria não responder a isso. Daí ser cada vez mais importante a transparência por parte das marcas para com o consumidor.

Casaco e óculos de sol em segunda mão, na Maudde | ©Maudde Photo: Luís Baltazar

As emoções, os valores e a fast fashion

Sente que é emocionalmente difícil, para pessoas que submetem as suas roupas à Maudde, desligarem-se das memórias associadas a estas?
A moda está muito ligada às emoções, está cientificamente provado que trás memórias. Às vezes boas, outras vezes más. Nós temos um serviço concierge, em que vamos buscar as peças a casa das pessoas. Fazemos a seleção, a recolha e estas não têm que se preocupar com nada. Por várias razões, muitas vezes nem falamos diretamente com as donas das peças, o processo é feito através de alguém próximo mas não o próprio. Há uns meses, fomos a uma casa que não sabemos de quem é (temos acordos de confidencialidade e não estamos autorizadas a divulgar a identidade das pessoas) recolher peças incríveis, muito bonitas mesmo. Com muito bom gosto, muitos vestidos de noite e peças para eventos. Já no armazém à medida que fazíamos uma análise mais detalhada e recolhíamos a informação, ficamos tão entusiasmadas que começamos a divagar sobre quem seria aquela pessoa, ou melhor, o que fazia. Porque aquelas roupas, têm sem duvida uma história que deve ser super interessante. O vintage tem uma história que não sabemos qual é e que lhe dá um carisma único. Uma peça vintage é mais valiosa, para mim, do que uma peça nova, exatamente por isso. Porque já tem em si uma história. Encontrar peças desenhadas pelos criadores que deram o nome às marcas torna-se possível. Há peças que se julga que já não se conseguem encontrar mas o mercado de segunda mão proporciona isso.

Fala-se da ligação do consumidor às marcas porque identifica-se com os seus valores e propósito. Como é que isso se pode refletir no mercado de segunda mão?
É engraçado falar nisso. Porque a percepção que tenho é que atualmente as pessoas sentem o oposto. Apesar de moralmente não estarem de acordo ou alinhadas com os princípios e valores de determinadas marcas, como as de fast fashion, por exemplo. Ainda sentem que não têm grandes alternativas quando querem ter peças “novas”. Que estejam dentro das tendências e a preços acessíveis. E apesar do peso na consciência, acabam por recorrer sempre a este tipo de marcas. No mercado de segunda mão, acima da identificação com as marcas, existe a identificação com o princípio. Em que as pessoas sabem que estão a comprar uma peça “nova” para o seu guarda roupa mas ao mesmo tempo não estão a contribuir para o problema (desperdício). Pelo contrário, até estão a promover uma série de coisas boas como a diminuição do desperdício ou do excesso de produção. Mas claro que, quando falamos de peças premium e de luxo, que são as que vendemos na Maudde, sabemos que há muitas pessoas que se identificam com a estética, com os valores e até mesmo com a história das marcas. O mercado de segunda mão permite a compra destas peças quando não existe a possibilidade financeira de as comprar quando são novidade (primeira mão). E se calhar, em vez de comprarem três ou quatro peças mais baratas, preferem comprar uma de melhor qualidade, em segunda mão. Esperemos que sim, que se reflita no mercado de segunda mão, pelo menos este é o nosso objectivo.

A fast fashion é apontada como um dos principais agentes do impacto negativo sobre o planeta. Pela sua produção em grande escala num curto período de tempo, contudo, as marcas de luxo também produzem cada vez mais coleções – runway; resort; cápsulas; colaborações. O  que as diferencia neste aspecto (o da produção excessiva)?
Apesar do aumento do número de coleções nas marcas de luxo, acredito que ainda há uma considerável diferença na quantidade produzida. Que não se compara à chegada semanal de milhares de produtos às lojas de fast fashion espalhadas pelo mundo inteiro. Ainda assim, é verdade que as peças de luxo não vêm com selo de garantia de práticas sustentáveis. Mas há aqui alguns factores que fazem a diferença. Começa na produção. Uma peça de luxo não pode ser produzida ao ritmo de uma peça fast fashion. Porque não ficaria com a mesma qualidade e não se poderia justificar o preço (muito) mais elevado. Há um cuidado no processo de produção e na qualidade dos materiais que no fast fashion não existe. Existe uma diferença real, de facto, têm um ciclo de vida muito maior. Por outro lado, estamos a falar de um ecossistema em que o cliente é, regra geral, muito exigente e informado. E por isso, as marcas estão muito mais debaixo de fogo relativamente às suas práticas. Em 2017 a Burberry queimou mais de 30 milhões de dólares em produtos para proteger a sua propriedade intelectual. Isto já acontecia na indústria, não era segredo. Mas quando veio a publico, foi chocante para as pessoas. A verdade é que imediatamente após este escândalo, a Burberry começou um caminho de práticas sustentáveis. Que a levou a ser considerada, atualmente, uma das marcas de luxo mais sustentáveis do mercado. Pode ter sido pela pressão do mercado, porque o consumidor está cada vez mais exigente em matéria de sustentabilidade. Ou, pela tomada de consciência ambiental dentro da empresa. As marcas de luxo, enquanto trendsetters, acabam por ter de alguma responsabilidade sobre toda a indústria (da moda). Os grandes conglomerados de luxo estão entre os frontrunners na performance de sustentabilidade. Temos também o recente Pacto da Moda – a pedido do Presidente francês, Emmanuel Macron – e liderado por François-Henri Pinault, presidente e CEO do grupo Kering, que estabelece objectivos práticos para reduzir o impacto ambiental da indústria. E foi assinado por mais de 30 empresas de moda, de luxo e também de fast fashion. O compromisso revela um objectivo comum para toda a indústria da moda. Claro que nem todas as marcas têm esta capacidade de investimento e, por isso, é importante que exista uma partilha e uma união de toda a indústria neste caminho para a sustentabilidade. E as marcas de luxo têm tido um papel importantíssimo nisso.

Artigos de luxo em segunda mão, na Maude | ©Maudde Photo: Luís Baltazar

A sustentabilidade para a Maude

É muito difícil manter os vossos princípios sustentáveis?
O nosso objectivo era criar uma opção sustentável para as pessoas. Porque as pessoas ainda procuram muito a diversificação e a novidade. Segundo o estudo da McKinsey e do Business of Fashion, a sustentabilidade está nas primeiras escolhas tal como a novidade e um guarda-roupa diversificado. E foi este desfasamento que nós encontramos no mercado. As pessoas já têm estas preocupações e querem sentir que o seu consumo é responsável mas ao mesmo tempo ainda têm vontade de novidade. De uma peça nova no seu guarda-roupa, vestir algo que nunca vestiu. A individualidade de estilo também é algo que as pessoas estão a querer cada vez mais. A procura a sua individualidade e peças únicas, que não se encontrem facilmente em outras pessoas, pela rua. Acho que nós (colectivamente) estamos a fazer uma transformação incrível na industria. E sim, estamos a cumprir o nosso objectivo de apresentar propostas diferentes e sustentáveis às pessoas que querem diversificação e qualidade. Queremos promover esta economia circular. Mas por outro lado, há questão dos transportes, adorava ser cem por cento sustentável. Ainda não o consigo ser porque as roupas transitam muito de um lado para o outro, de carro. Depende das pessoas de encontrar formas responsáveis de consumo sustentável. De encontrar soluções mais ecológicas para o transporte, porque obviamente a moda precisa. Com pequenas mudanças para chegarmos à transformação.

Mais que mudança, transformação?
Sim, transformação. A minha interpretação, é que transformação é algo que altera. Já a mudança, para mim, é algo em pequena escala. Há vários caminhos para a sustentabilidade, não existe só um e há varias áreas que temos que mudar. Pequenas mudanças levam à transformação.

Qual é a vossa maior ambição?
Em Portugal, gostávamos mesmo muito de dinamizar este mercado. Fazer que as pessoas olhem para o mercado de luxo em segunda mão como uma das primeiras hipóteses de comprar uma peça de roupa. Colocar as peças de segunda mão no caminho normal das compras das pessoas. De fazer crescer este mercado, porque vai ser bom para todos. Vai ser bom para as lojas físicas porque os consumidores vão conhecer melhor, vai ser bom para a Maudde e para o ambiente. Depois, a nível europeu, gostávamos vir a ser uma referencia.

Qual é o seu motto para uma moda mais sustentável?
Tudo tem que circular, a moda tem que circular. As roupas têm que circular. A inovação tem que circular. Tem que haver partilha de toda industria para a inovação circular e conseguir ser adoptada por aqueles que não têm hipóteses de investir. E por fim, a informação tem que circular. Porque pessoas informadas fazem escolhas inteligentes e conscientes. É por aí que tudo muda. Pessoas informadas mudam o Mundo e conseguem fazer revoluções e transformações. É circular.

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